Freitag, Januar 22, 2010

O ritual do eterno II

(Quem mesmo disse que a vida é contínua? Não lembro. Mas isso beira a uma obviedade alarmante. É assim: você caminha, há pedras; continua caminhando, há pedras. Até encontra alguém para caminhar. Daí as pedras se multiplicam. O dar de mãos se rompe, os dedos se desentrelaçam. Há pedras. Aí recomeçamos a caminhar mesmo assim, com pedras, com tudo, mas agora estamos apegados às pedras detrás, aquelas que machucaram as mãos dadas (e não os pés), temos aí não uma continuidade, não um ciclo, mas um joão-bobo de vida.)



Apagou o cigarro no cinzeiro perto das tintas, mais uma pincelada ali na direita. Um pouco mais de amarelo, já que a vida não podia ser sépia seus quadros eram. Foi buscar a xícara de chá de camomila na cozinha, estava sol. Claro que estar sol não faria mais diferença alguma nessa vida, mas estava. E não era sol de suar, era só um sol de adornar o céu e iluminar os olhos. Às vezes uma brisa ou outra roçava no seu penoir e fazia o tecido leve roçar nos próprios seios, o que lhe causava cócegas. Lá ventava, na outra cidade não, nunca mais.
Goles na xícara cheia de chá, limpar o pincel no pote d'água, melar de novo no amarelo. Viu uma sombra se mexer na fresta da porta. Nessas horas não era bom viver sozinha, mas pior era pensar nessa particularidade de solidão. A campainha tocou. Ajeitou a enorme trança no ombro direito, apertou o penoir longo e preto e abriu. O chão não sumiu, muito menos a respiração parou. Era uma cena óbvia demais e, claro, feliz demais. Mal completado um ano de casamento e ele estava ali na sua porta: ereto mas sem jeito, com as mãos nos bolsos e os olhos muito brilhantes. Ele queria sorrir, mas não era momento de rir para a mulher que tinha abandonado há um ano por puro ciúme imbecil e engano próprio. Ele entrou pela sala e ela lhe foi generosa. Estendeu os braços de porcelana, envolveu seu pescoço neles, sorriu e abraçou e abraçou, e de repente não haviam mais erros, mais enganos e nem mais pecados alheios no mundo. Havia somente aquela mulher tão branca, de estrutura tão frágil, envolvendo aquele homem tão homem, mas que parecia um menino em seus braços.
- Quer beber alguma coisa?
Lá se foi uma garrafa inteira de whisky e nenhuma explicação. Era preciso que não se estragasse o momento. Naquela hora qualquer explicação traria discussão e, assim, a coisa toda viraria vazio ou novela de má qualidade. Era preciso cuidar do momento como não se cuida da vida, era preciso cuidar bem. Risos leves, risos estridentes por pura traquinagem um com o outro, toques leves entre as mãos até elas ficarem finalmente entrelaçadas. Não haviam pedras, só almofadas fofas pelo chão em que estavam sentados. Mais um gole no copo de whisky, a música "Some of these days, you'll miss me honey..." tocando, sorrisos cruzados, olhos de piedade. Tarde demais, quando a vida foi voltar para espiar eles já estavam entrelaçados não só pelas mãos, mas todo o corpo. As mãos dele percorreram aquelas costas tão brancas e macias, os braços apertavam-lhe as costelas; era preciso não deixá-la escapar novamente. Ela achava graça da força do abraço dele e lhe beijava a face, a boca, o pescoço. O celular tocou, era ela.
- Preciso ir.
- Não te entendo, o que você veio fazer aqui então se não é para ficar pra sempre?
- Eu preciso ir.
Enquanto se vestia ela olhava-lhe com certa amargura que com todo o esforço do mundo tentava não aparentar. Vestiu o penoir de volta, pegou uma xícara de chá e foi observar na janela. A campainha tocou. A vida às vezes é uma criança sem noção da sua força de miséria. Era o rapaz que toda semana passava lá para beber cerveja e amá-la. Ela não o amava, mas achava cômico o jeito dele.
- Oi, querida, está um sol e tanto hoje, não?!
- Pelo visto, você nunca fica sozinha. - disse com deboche o seu amor - .
- Vá embora. - disse calmamente dando um gole no chá - .
- O quê?! - disse o rapaz que acabara de chegar -.
- Você não, querido, ele.
- Ainda bem que não voltei atrás na minha decisão.

Saiu porta afora achando-se o maior idiota da paróquia e resolveu nunca mais voltar naquele apartamento e naquele coração. Seria difícil, claro, mas quando ninguém sabe o que se passa dentro de ti sempre é mais fácil; e nem ela sabia o quanto era amada por ele. Talvez, jamais o saberia. Atravessou a rua repleto de ciúmes e com os pés querendo dar meia volta, mas se foi por essa vida. Ela pegou uma cerveja para seu "amigo" semanal e tentou não chorar, e milagrosamente não chorou. Acendeu mais um cigarro, falava com a boca, enlouquecia-se com o álcool, e recordava com o coração.




"Pra você guardei o amor
Que nunca soube dar
O amor que tive e vi sem me deixar
Sentir sem conseguir provar
Sem entregar e repartir"

(Nando Reis)

2 Kommentare:

Unknown hat gesagt…

uuuuu :( portugees

Walter Andrade, hat gesagt…

Me senti tão familiar com essa pintora.