Samstag, November 06, 2010

Maledicência

"Eu sei, eu sei, eu sei. Só que eu não aguento mais ninguém indo embora."

C. F. Abreu


Lamentar por você morto foi o escape melhor para todos. Você vivo, imerso na própria desgraça que fluía para nós não nos despertava qualquer sentimento nobre. Fácil agora fazer uma matemática ignominiosa, a conta de uma vida criteriosamente errante subtraída por uma morte trágica. Penso que de trágica não há nada, tragédia é só para os bons e você, assim, tão enlameado de pecados-vícios se assemelha mais a um justamente morto, o que saiu com um rifle pela vida caçando a própria morte. Para mim o caso ainda é elevado a um outro patamar: você, nos momentos salubres; você, descalço e doente; você, engatinhando na vida adulta; você, retirando pétala por pétala até sobrar um galho seco.
Hoje vejo árvores imensas com apenas poucos pontinhos brancos de flores e concluo que a vida é isso; não somos flores e nascemos folhas, olhantes das flores, secamos rápido e nem nascemos belos. O verde, mesmo colorido, será sempre o verde-árvore e permanecerá esquecido, deixado, sem exalar aroma ou se deixar penetrar pelo olfato alheio. Só conseguimos sentir os pés e, clack!, uma folha amarelada. Conhecemos a vida bem demais para um ser humano, porque sempre andamos pedindo licença para a morte, "quero passar". E no âmbito de extrair tudo, olhar tudo, sentir tudo, acabamos por trazer o que há de pior na existência; e nos tornamos piores, e reconhecemos um ao outro com uma tristeza profunda.
E isso me dói de uma maneira que passa longe da tristeza de tanto doer, é como perder alguém tão querido e sofrer tanto que não há nome. Meu sofrimento com o você nunca mais ainda não tem registro em qualquer léxico. Como o verbo oîda em grego, eu não vi mas basta porque sei; e é de um saber dolorido, da maldade de não ter o que fazer e buscar meios, perguntar para Deus e para os anjos se é possível esfarelar o livre-arbítrio e criar uma amplitude justa. Nunca houve. A morte desmistificada, fácil, sem significação: uma morte desamparada.