Donnerstag, Dezember 30, 2010

O Ritual do Eterno III

"- Ela era piedosa, mas - quem pode saber? - o coração alheio é floresta espessa!"
[ "A dama do cachorrinho e outros contos" - Tchekhov].




A vida sempre lhe fora engraçada, sempre corria para longe dela e agora, veja bem!, crescia dentro dela. Não houve expectativas desde o começo, tudo o mais mecânico possível; como naquele dia da igreja: fazer o que tem que ser feito por pior que se possa fazer ou não fazer. Papai morreu assim. Saiu mais uma vez para sua branquinha, os pés já podres e quando se viu não sabiam nem como iam enterrá-lo. Mamãe ficaria muito sentida se visse.
O ventre de uma brancura pura esticando a cada dia que esgotava, os cigarros rareando, o álcool desaparecido. Era preciso conversar sério com a vida dessa vez, um começo dela estava por vir, era preciso ajuda. Num daqueles finais de tardes demasiadamente ensolarados ele a viu: vestido florido comprido deixando óbvia a barriga, secando o suor do rostinho branco - agora ainda mais angelical -, tentou fingir estar observando a vitrine, mas logo ela o viu com uma expressão de desespero, como se pedisse perdão pelo ventre inchado.

- Eu sinto muito.
- Está tudo bem agora, querido. Preocupa não.

Sinal de afirmativo com a cabeça. Para a paternidade, para saber se estava tudo bem, se morava no mesmo lugar. Custava-lhe muito fazer o choro, a indignação presos na garganta descerem, caminhar sozinha todo aquele tempo lhe pareceu fácil, mas ver diante dos olhos o quanto tudo custou tão caro, o quão uma mão, um abraço, um eu te amo seriam bem melhores do que aqueles muros de silêncio fizeram falta pesava no coração. Daí veio o medo, sensações ruins e adjacências; era uma dor mas era um presente tê-lo lá. Ele sempre com seu rancor nos bolsos, talvez por isso sempre andasse com as mãos nos bolsos -, pronto para inundar o mundo com a sua dor milimetricamente articulada para ser vivida. Era a única pessoa que usava a dor para viver e não como conseqüência de algo. E o seu ventre, assim, tão grande e tão frágil ao mesmo tempo pedia socorro e pedia pelo pai em um mesmo segundo. Já não havia mais o que fazer: a mesma mão que vivia imersa no bolso cheio de rancor agora acariciava aquela barriga envolta em pano florido.

- Eu amo você e o nosso pequeno.

Agora o beijo nos lábios que antes tinham um leve aroma de tabaco tem aroma de chá de flores. Abraço delicado para não machucar o nenê. Ele não fazia idéia do que ia fazer com o aro dourado em seu dedo; também não o preocupava muito. Estava envolvido por uma emoção flutuante de que todas as coisas são pintadas com cores leves e um pouco borradas para dar a impressão de continuidade. Era preciso tomar decisões, era preciso cuidar. Era preciso deixar o papel de pernas andantes que sempre vão embora orgulhosas e ficar. E talvez nunca mais expremer coração alheio para dar cor aos rancores.

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